Neste vídeo, o griot Toumani Diabaté, apresenta um belíssimo solo de kora ( o som deste instrumento me encanta); nele se encontram imagens sobre o processo artesanal de fabricação de uma kora. Aproveitei, então, para valorizar esta postagem com um mito bambara, recontado pelo Prof. Dr. Marcos Ferreira Santos.
Desfrutem !
A kora dos griots
Os jeliya ou griots (em especial na Gâmbia e Senegal – tradições Bambara, Senufo e Mali que dialogam com as tradições Bantu e Dahomey), sempre procuram uma árvore para, aos seus pés ou na sua copa, cantar. Sabem bem que a árvore é uma mãe, uma amante e sábia que lhes reforça o cantar.
Um de seus principais instrumentos é a kora – ancestral da harpa ocidental ou da lira grega, possui 21 cordas feitas com linha de pesca e utiliza uma grande cabaça como caixa de ressonância, cuja forma se assemelha à barriga de uma mulher grávida. Pode ter um ou dois braços onde as cordas são estiradas e afinadas (com estrutura semelhante ao nosso berimbau, embora, no caso do berimbau, a cabaça seja bem menor).
Um mito nos diz da origem da kora: um caçador e seu cão procuravam algo para comer no meio da floresta quando se deparam com uma grande árvore. Forte, alta e de tronco muito largo. E ao pé da árvore estava recostado um estranho instrumento. Tinha uma grande cabaça com várias cordas estiradas sobre ela e de onde saía uma doce melodia que lhes prenderam a atenção.
O caçador, com receio, vai se aproximando do estranho instrumento paraouvir-lhe melhor os sons quando se aproxima um velho espírito disfarçado em homem. O caçador lhe pergunta:
“Bom dia nobre senhor! Acaso sabes de quem é este estranho instrumento?
Acaso sabes o que é?”
O espírito disfarçado de homem lhe responde com naturalidade:
“Bom dia caçador! Sim sei... é uma kora e é minha! Queres ver como se
toca a kora ?
Entusiasmado, o caçador concorda e então, o estranho espírito disfarçado de homem tocou a kora com muita delicadeza e seu som penetrou no coração do jovem caçador que foi aprendendo como tocar aquele belo instrumento. Ao final da tarde, já tendo experimentado como tocar a kora, o espírito disfarçado de homem levantou-se e disse ao caçador:
“Leve para casa, toque-a e eu te mostrarei muito mais!”.
Mas, logo em seguida colocou uma condição para que o estranho homem seguisse lhe ensinando (o caçador não sabia se tratar de um espírito): eledeveria tocar durante o dia para a sua aldeia, mas, à noite ele seria visitado por um espírito em seus sonhos.
O caçador voltou à aldeia e tocou para a sua gente que ficou fascinada com a beleza das melodias que cantavam as façanhas dos ancestrais numa
“linguagem cheia de imagens e flores”. Sempre que chegavam visitantes e
estrangeiros para conhecer o lugarejo, o cantor (que já não caçava mais...) entoava suas canções com o magnífico instrumento.
O caçador não se esquecia do homem que encontrara no meio do caminho (ele não sabia que se tratava de um espírito) e à noite, em seus sonhos mais profundos, o homem lhe mostrava lugares nunca vistos, falava com os ancestrais que lhe contavam muitas histórias, aprendia a compor novas e velhas melodias e aprendia a construir outras kora.
Quando, numa certa noite, o estranho homem contou-lhe que, na origem dos dias, o espírito das coisas fez-se homem e se pôs a falar numa linguagem muito estranha, “cheia de imagens e de flores”. As pessoas da aldeia daquele homem não compreenderam aquela linguagem estranha e, considerado como louco, foi atirado ao mar. Foi, então que, um peixe devorou o homem.
Mais tarde, um jovem pescador conseguiu pescar aquele peixe que havido devorado o homem. Assou-o e o comeu satisfeito. Mas, com o passar do tempo o jovem pescador começou a falar numa linguagem misteriosa que ninguém, em sua vila, compreendia. As pessoas o apedrejaram e foi enterrado bem fundo na terra.
Com o passar dos anos, o vento que vinha do deserto foi descobrindo a cova em que o pescador foi enterrado e alguns restos de seu corpo foram parar no cuscuz (“kous-kous”) de um caçador. Logo em seguida, aquele caçador desavisado começou a narrar coisas desconhecidas de sua tribo, sem saber de onde vinham aquelas palavras estranhas cheias de imagens e flores de velhos tempos. Sua tribo, por achar perigoso o comportamento estranho daquele caçador, o exterminou reduzindo a pó o seu corpo e, sem perceber o erro, lançou o pó ao vento.
Foi quando um homem que tocava sua kora na floresta, afinando as cordas sobre a maravilhosa cabaça e extraindo as mais belas harmonias com seu instrumento, foi surpreendido por uma rajada empoeirada de vento e respirou os pequenos grãos de poeira que sobraram do corpo do caçador. Em seguida, o homem começou a cantar e a se acompanhar com a kora; e as canções e histórias, que saiam de seus lábios, cheias de imagens e flores, fizeram com que todos de sua aldeia, que o ouvissem, se pusessem a chorar: alguns de tristeza, outros de alegria, outros com intensa saudade. E todos, sem saber, ao certo, a razão disso. Por isso, deixaram-no viver. Pois é dessa forma que nasceu o griot.
Assim, o jeliya ou griot pode criar e, ao mesmo tempo, ser fiel à tradição. Grávido e orgulhoso de sua ancestralidade aprende na noite de seu espírito, dedilha memórias e canta nascentes.
Mito bambara adaptado pelo prof. dr. MARCOS FERREIRA SANTOS
(linguagem de imagens e flores é citação de S. Spina,
‘A lírica trovadoresca, EDUSP, 1996)
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